Tendo tomado conhecimento da inauguração, pela Junta de Freguesia de Queluz, de uma galeria fotográfica de todos os presidentes de Junta desde a sua criação, incluindo os mandatários durante a ditadura fascista, a URAP tomou posição e manifestou o seu repúdio pela iniciativa na Assembleia de Freguesia de Queluz, no passado dia 17 de Dezembro, denunciado este acto de reabilitação do fascismo.
Carta dos Antifascistas à Junta de Freguesia de Queluz
Sr. Presidente da Mesa da AF de Queluz
Srs. membros da AF de Queluz e membros da Junta
Caros queluzences
A União de Resistentes Antifascistas Portugueses tomou conhecimento da inauguração, pela Junta de Freguesia de Queluz, de uma galeria fotográfica de todos os presidentes de Junta desde a sua criação, incluindo os mandatários durante a ditadura fascista. A iniciativa obriga-nos a tomar posição.
Criada em 1925 a partir da Freguesia de Belas, Queluz ganha estatuto autárquico cimeiro, cumprindo um ciclo histórico entre o obscurantismo e o progresso, durante o qual se impôs o progresso mesmo face a poderosas forças reaccionárias.
Obscurantismo e progresso, de facto, pois recordamos que no Palácio Nacional de Queluz nasceram D. Miguel e D. Pedro - o primeiro, um absolutista sanguinário, cuja ferocidade foi criticada pelo seu próprio médico e amigo íntimo, o visconde de Queluz (que pela ousadia foi, aliás, exilado no Alfeite); e o segundo, D. Pedro, um suserano liberal, que ousou sacudir a poeira régia que soterrava o País e instituir uma monarquia mais aberta. D. Pedro viria a falecer em Queluz, justamente no quarto onde nasceu, o qual homenageia a utopia de Quixote e por isso chama-se quarto Cervantes.
Assim é - obscurantismo e progresso, porque se foi de Queluz que partiram guarnições com a missão de esmagar a revolução que, a 5 de Outubro de 1910, implantou a República Portuguesa, não é menos verdade que o reconhecimento da Freguesia com sede em Queluz deve-se precisamente ao regime republicano. A criação da Freguesia de Queluz, sublinhe-se igualmente, antecede em cerca de 10 meses o golpe fascista de 28 de Maio de 1926, tendo sido, por isso, um dos últimos actos de divisão administrativa e territorial da República, que havia avançado, já em 1916, com a separação entre poder civil e eclesiástico. A nossa freguesia é filha do progresso, portanto.
A instauração do fascismo em Portugal fez regressar as trevas à nossa terra, assumindo mesmo contornos só comparáveis aos do «tempo dos afonsinhos», como costuma dizer o nosso povo. Desde então, a Junta, como a maioria das demais em todo o País, foi submersa nos caudilhos da repressão e da bufaria fascistas. Mas não sem resistência. É falsa a tese que afirma que o fascismo foi instaurado e consolidou-se em Portugal como se estivesse em passeio. Alguns exemplos ocorridos precisamente na nossa terra contrariam esta bafienta lenga-lenga.
Logo em 1936, a única imprensa livre em circulação no Portugal sequestrado pelo fascismo, relatava que «as massas impuseram a libertação de um preso!» (sic). Porque é que o indivíduo foi preso? Por ter comentado, para outros operários, a meio de uma procissão, que entre os carregadores do sacro andor estava um beato merceeiro, conhecido por roubar no peso, e ao lado, no mesmo pálio, seguia um não menos devoto sujeito que era «mau pai, mau marido e mau irmão» (sic). Denunciado pela bufaria fascista, que zelava por quem roubava no peso do pão e maltratava os semelhantes, o operário foi levado pela polícia para a Junta de Freguesia. Para lá confluiu uma multidão, relata-se no mesmo jornal, que montou cerco, obrigou a libertação do detido e arrancou às autoridades fascistas um pedido de desculpas.
Já em 1944, a mesma fonte informa que as gloriosas jornadas de protesto ocorridas a 8 e 9 de Maio desse ano, contra a fome e pelo pão que faltava ao povo, mas fartava os fascistas e engordava os exércitos nazis de Hitler; essas gloriosas jornadas, também se fizeram sentir em Queluz.
Como se fizeram sentir, mais tarde, entre Julho e Dezembro de 1961, a luta dos soldados aquartelados no Regimento de Artilharia, os quais rejeitavam a guerra colonial e o fascismo, promovendo, durante meses, levantamentos de rancho, fazendo circular manifestos, e, por fim, no dia anterior ao embarque para África, destruindo as casernas sem que os Comandos, chamados de urgência, lograssem conter-lhes a revolta.
Resistência ao fascismo e às suas medidas, executantes e protegidos, sim, sempre, e aqui mesmo em Queluz, pese embora a repressão, os legionários e os bufos, como foi o caso da greve de 1958 dos operários das pedreiras de Carenque, então lugar da Freguesia de Queluz, que exigiam melhores salários e o fim dos descontos na féria que o patrão fazia... quando chovia; ou da luta de Outubro de 1969 contra o aumento das tarifas da CP, com a promoção pela população de Queluz de um abaixo-assinado que se estendeu a toda a Linha de Sintra; ou ainda da luta de Fevereiro de 1972, com o protesto do movimento cooperativo contra o decreto que restringia ainda mais a sua actividade e o direito de reunião a ter em Queluz um dos seus baluartes.
Nestes combates, homens e mulheres arriscaram tudo - os empregos e com eles o sustento familiar; a prisão, a tortura e o degredo, práticas correntes durante o fascismo. Mas a razão justa das massas em movimento acaba sempre por se impor à violência atirada contra o povo. Lembremos as mulheres de Queluz, que a 8 de Março de 1972 venceram a repressão realizando um colóquio de comemoração do Dia Internacional da Mulher. Ou o povo de Queluz, que em Março de 1974 apoiou a brava luta dos trabalhadores da empresa de camionagem Eduardo Jorge, integrando a vaga grevista que alastrava no País precedendo o derrube da ditadura.
Com a Revolução de Abril, abriu-se o período mais luminoso da nossa história. Com Abril, varremos 48 anos de roubo e espezinhamento do povo e do País; sacudimos a servidão, instaurámos amplas liberdades democráticas em todas as áreas da vida nacional. O Estado fascista e as suas dependências foram saneados. Em seu lugar construi-se um Estado democrático que garantiu serviços e direitos básicos inerentes à condição humana - emprego com direitos, água e saneamento, electricidade, transportes, saúde, educação, previdência, cultura, lazer. Os queluzences lembram-se de quando o fascismo fazia de tudo isto um luxo, amarrando o povo à mais indigna indigência.
Em vez de serem os chefes de família a «elegerem» a Junta, como no fascismo, os órgãos do Poder Local Democrático de Abril passaram a ser designados por vontade popular em sufrágio universal e directo. A Junta de Freguesia tornou-se motor do desenvolvimento e progresso de Queluz; pólo de intervenção, esclarecimento e formação de gerações, e de promoção do bem-estar dos queluzences. Caminhos de cabras percorridos por crianças e adultos descalços e famintos deram lugar a estradas e passeios. Caneiros e terrenos imundos deram lugar a parques urbanos. Construíram-se escolas, destruíram-se bairros de lata e habitações insalubres. Queluz abriu-se ao mundo.
Não ignoramos que no actual contexto político e social, com Portugal sequestrado pelas comissões executivas dos grandes capitalistas - as troikas estrangeira e nacional - emergem os que babam saudade pelo tempo em que o povo, quando contestava, era preso e espancado na Junta de Freguesia, enxameada de canalhas fascistas. Não raras vezes, eram entregues aos biltres da PIDE.
Estamos cientes de que há os que recordam os bailes fascistas no Palácio de Queluz, onde as debutantes se mostravam à sociedade e a nata do regime fechava negócios fumando charutos nos jardins estilo Versalhes. Isto, é claro, depois de lautos repastos confeccionados na cozinha velha do Palácio. A opulência de uns poucos ofendia a escassez da imensa maioria.
Estamos conscientes de que há quem suspire de nostalgia pelo tempo em que o «botas», trajando fraque, gastou uma fortuna para receber a rainha de Inglaterra no Palácio de Queluz, mandando até construir muros e plantar árvores para tapar o Bairro do Chinelo. O Bairro do Chinelo, que ainda lá está, albergava, desde os tempos de D. João VI, os operários e artesãos do Palácio, e era, no entender de Salazar e da sua camarilha, uma visão grotesca para apresentar à monarca do então Império Britânico. Quis Salazar tapar a miséria a que condenava o nosso povo e o nosso País. Os queluzences não esquecem o episódio naquele ano de 1957.
Como não esquecem que o ditador fascista recebeu no mesmo Palácio o presidente dos EUA, Dwight Eisenhower, em 1960, e que ali afirmou que os povos africanos eram inferiores e incapazes de se governarem a si próprios, destilando o mais empedernido racismo que se alojava nas cavernas do pensamento salazarista.
A descoberta, num armazém no Pendão, em 2009, de uma parte do que se pensava ser o arquivo perdido de Salazar relativo aos anos de 1938 a 1957, acentua a ligação da nossa terra à denúncia do fascismo e do nazismo. Pelo menos é o que considera o director do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Silvestre Lacerda, reputado curador que os senhores da Junta de Freguesia de Queluz não desconhecem, certamente.
Segundo a imprensa escrita portuguesa, o Doutor Silvestre Lacerda confirmou que os maços de documentos mostram como Salazar era obcecado pelo controlo da informação e pela repressão dos costumes (como o uso de fato de banho na praia do Estoril, só para dar um exemplo tão corriqueiro no fascismo como ilustrativo da mesquinhez da ditadura, do ditador e do seu séquito local); mostram, ainda, que Salazar era bonacheirão para com os açambarcadores e especuladores que durante a II Grande Guerra Mundial votavam o nosso povo à fome. Ilustram como Salazar apoiou com volfrâmio e alimentos subtraídos à boca dos portugueses as hordas hitlerianas que pisavam toda a Europa com botas cardadas.
Os documentos encontrados em Queluz, acrescenta o director do ANTT, contêm originais preciosos sobre a perseguição e repressão da então chamada «organização subversiva Partido Comunista Português», mas também do movimento antifascista, como é o caso da resposta de Salazar à carta assinada por António Sérgio, Maria Lamas, Bento de Jesus Caraça, Mário Soares, Tito de Morais e Maria Isabel Aboim Inglez contra a ilegalização do MUD, em 1948.
A exposição de presidentes de Junta, incluindo os serventuários fascistas, é uma provocação gratuita ao povo de Queluz e aos seus profundos sentimentos e práticas democráticas, bem como ao Poder Local Democrático conquistado com Abril. Uma afronta a este povo tão maltratado pela política de miséria imposta pelos governos nos últimos 36 anos, e neste momento confrontado com a extinção da sua Freguesia, a qual se propõe que seja agregada a Belas, como «no antigamente».
Não é tal ou tal ex-presidente da Junta que nos incomoda, embora algumas personagens sejam deveras repugnantes. É o acto, no seu conjunto, que revela saudades do tempo das juntas da paróquia, que ensinavam que deus criou a mulher a partir da costela do homem e para o servir; que quantos mais ricos houver, mais fartura de esmolas haverá para os pobres, porque sempre assim foi desde o início dos tempos, e sempre assim será com a graça de quem nos governa.
Saudades do tempo, têm, em que as juntas de freguesia no Portugal fascista, pouco mais faziam que passar atestados de pobreza, promover caridade higiénica, ajudar a reprimir quem lutava e organizar a bufaria, aplicar com zelo as ordens do sr. Presidente do Conselho, a bem da Nação.
Quer a Junta de Freguesia de Queluz fazer justiça aos ilustres. Pois bem, comece por lutar sem descanso para que seja dada utilização às antigas instalações do CEBESQ, no Parque Conde Almeida Araújo, onde uma pintura de Stuart Carvalhais morre aos poucos abandonada. Faça de Queluz verdadeiramente a terra de Stuart Carvalhais, homem do progresso contra o obscurantismo, republicano, primeiro, antifascista, depois, artista multifacetado e vulto nacional da ilustração, cuja casa onde viveu foi demolida porque a Câmara Municipal de Sintra não exerceu o direito de preferência, e a Junta de Freguesia assobiou para o lado.
Quer a Junta de Freguesia fazer justiça aos ilustres, faça-o divulgando Ruy Belo, homem das letras que escolheu residir em Queluz, católico doutorado em direito canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino, em Roma, ostracizado pelo regime de Salazar e Caetano por integrar actividades opositoras e as listas antifascistas às eleições-farsa de 1969. Ruy Belo, o poeta, o ensaísta e tradutor de Lorca, Saint-Exupéry ou Montesquieu. Ruy Belo, o pedagogo humanista que o fascismo impediu de leccionar na Faculdade de Letras.
Quer a Junta de Freguesia homenagear os seus, pois faça-o, mas não com retratos de alguns fascistas, mas lembrando os homens e mulheres de vários partidos e aqueles sem partido, que com Abril e ao lado dos queluzences se bateram pelo progresso e o desenvolvimento da nossa terra.
Se assim proceder, a Junta de Freguesia de Queluz estará do lado luminoso da história, do seu movimento progressista. De outro modo, desenterra velhos monstros que, como avisou Bertold Brecht aquando do derrube do nazismo, nascem de um ventre que ainda é fértil.
«Cuidado. Muito cuidado», dizemos nós, antifascistas, como disse Brecht. E do mesmo modo apelamos a que oiçam com atenção, oiçam com muita atenção: já tentaram esmagar o povo português, dobrá-lo à exploração e ao terror; já arrastaram gerações e gerações amarradas à canga fascista parida pelo capitalismo. Durante um tempo, esses consideraram-se todo poderosos. Mataram, roubaram à tripa forra, destruíram vidas e famílias que soçobraram à miséria. Arrotaram arbitrariedade e escancararam gargalhadas bouçais e indiferentes ao sofrimento humano. Foram derrotados.
Os dias que nos cabe viver, mostram que existe gente colocada nos lugares de mando, ignorantes da história e munidos de semelhantes ideias e práticas putrefactas. Mesmo tratando-se esta exposição de uma parolice serôdia e provinciana, escute-se com atenção o que disse o secretário-geral do PCP, num comício, aqui mesmo em Queluz, no momento em que em Santa Comba Dão se preparavam para erguer o Museu Salazar: «Este tipo de iniciativas - disse Jerónimo de Sousa - sabe-se como começam, mas nunca se sabe como acabam».
Os antifascistas - e estamos certos que a esmagadora maioria do povo de Queluz -, não querem homenagens laudatórias ao fascismo, não só pelo passado, mas também pelo presente amargo que crescentemente nos faz recordar esse tempo sombrio.
Não estamos dispostos a esperar sentados para ver «como acaba», tenham disso a certeza. Por isso, contem com a nossa oposição e acção caso insistam em manter expostos os retratos dos presidentes de Junta durante a ditadura fascista. Retirem-nos imediatamente, apelamos, para que nesta casa de Abril se oiça bem alto «25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!»
Pela URAP
Hugo Janeiro
17 de Dezembro de 2012