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Tarrafal - testemunhos, editorial Caminho, 1978
Dez pancadas no carril
«O campo despertava às cinco da manhã. O guarda de serviço ao portão dava dez pancadas num roço de carril suspenso por arames. Ainda no ar da manhã repercutiam as badaladas e já um segundo guarda ia batendo com as chaves nas portas das barracas.
- Vamos! Acima! - gritava.
Saltávamos da cama, enfiávamos as calças, calçávamos as botas sem meias e encaminhávamo-nos para as retretes. Seguíamos depois para as nossas lavagens com os trapos que nos serviam de toalhas.
Naqueles primeiros tempos, quando tudo estava por organizar, lavávamo-nos cá fora. Depois tivemos um "balneário". Era uma barraca de madeira, com chão de cimento. Estava dividida em duas partes, numa tomávamos duche, na outra lavávamos a roupa. Depois dois arames esticados entre as paredes mais afastadas estavam suspensas pequenas latas com buracos no fundo por onde caía a água com que tomávamos banho.
Pelas cinco e meia, de novo ouvíamos as pancadas no carril. Era o toque para o café.
Às seis tocava para a primeira formatura. Ao local onde formávamos chamaríamos mais tarde "Avenida das Acácias". O nome foi dado por nós e tinha a sua razão. Quando chegámos, dentro ou fora do Campo, não se via uma árvore. Tempos depois tínhamos plantado acácias rubras.
Nos primeiros tempos havia ainda a formatura tanto para o içar como para o arriar da bandeira. Nós, sem chapéus, enquanto os guardas e os soldados em sentido faziam a continência. Como nos acusavam de estar ao serviço da União Soviética, aquelas formaturas em honra do estandarte nacional, assim pensariam os guardas, deviam humilhar-nos. Quando compreenderam que a bandeira portuguesa nos era querida, a cerimónia foi caindo em desuso. Apenas os clarins anunciavam quando a bandeira subia ou descia no mastro do Campo e, se estivéssemos fora das barracas, devíamos ficar em sentido.
Uma vez formados, entrava no Campo o chefe dos guardas, armado com o seu séquito de subordinados, tantos quantos fossem as brigadas de trabalho a organizar naquele dia.
- Tirar chapéus! - comandavam.
Pelo regulamento eram obrigatórios aqueles cumprimentos quando o chefe entrava no Campo. E também aos guardas, ao comandante Numa Pompílio, aos oficiais e sargentos da "Companhia Indígena" e a outras autoridades do Campo.
Resistíamos. Sentíamo-nos vexados. Quando vieram os tempos mais duros não tirar o chapéu de palha significava muitos dias de "frigideira", porque o guarda participava imediatamente. Chagava a fazê-lo mesmo quando o cumprimentávamos.
Se o director entrava no Campo tínhamos de ficar em sentido, de cabeça descoberta.
Vingávamo-nos como era possível. Quando a caminho do trabalho nos cruzávamos com um burro, sempre um de nós comandava:
- Tirar chapéus! Burro também é gente!
E divertíamo-nos quando o asno zurrava como se nos respondesse.
Terminado na formatura o cumprimento ao chefe dos guardas, começava a distribuição pelas diferentes brigadas.
- Brigada da pedreira!
- Brigada da água!
- Brigada da estrada!
E outras. Mais tarde haveria também a "brigada brava", que marcou uma das épocas mais duras do Tarrafal.
Passávamos pelo depósito onde íamos buscar as ferramentas e seguíamos então formados para fora do Campo.
No campo ficavam os faxinas às casernas, escolhidos geralmente entre os mais fracos. O seu primeiro trabalho era despejar o latão que ficava durante a noite e onde só urinávamos. Varriam, lavavam a louça do colectivo, davam ajuda, quando necessário, aos camaradas em serviço na cozinha, lavando couves ou descascando batatas.
Cada barraca tinha um chefe eleito por nós ou nomeado pelos carcereiros, conforme a repressão era menos ou mais dura. Era responsável pelo que de mau pudesse acontecer. Havia quem levasse a tarefa a sério e quem não lhe concedesse qualquer importância, o que por vezes irritava os guardas. Com o tempo, muitos de nós iriam ficar no Campo, nas oficinas, quando os carcereiros se interessaram pelo trabalho mais rendoso da serralharia, carpintaria e outros. Não estávamos sob constante vigilância, mas todos os dias o director e o chefe dos guardas iam ver o estado da limpeza das barracas e do Campo e ver como corriam as coisas nas oficinas.
De manhã, fora do Campo, o trabalho era menos pesado para nós que o da tarde. Não porque fosse mais brando o ritmo imposto pelos carcereiros com as suas constantes ameaças, mas por haver menos calor e não estarmos tão fatigados.
Para fumar, beber água ou urinar era preciso pedir autorização ao guarda e era para nós humilhante ter de pedir licença a homens por quem sentíamos desprezo. Havia camaradas que nada pediam e preferiam não fumar ou beber.
Pelas 10, novamente batiam no carril. No Campo cessavam todos os trabalhos. Nas brigadas, os guardas comandavam:
- Alto ao trabalho!
Regressávamos trazendo ao ombro as picaretas, as pás, as alavancas, que deixávamos a entrada do Campo, depois de os guardas fazerem a contagem das ferramentas entregues.
Voltávamos então às barracas, suados, sujos. Mas apenas havia tempo para lavar a cara e as mãos. Quando não faltava água. O toque para o almoço não tardava. Os faxinas encaminhavam-se para a cozinha, nós para o refeitório, um barracão grande onde cabiam cerca de duas dezenas de mesas. Eram para dez pessoas e cada um tinha o seu chefe, encarregado de distribuir a comida pelos pratos.
Depois de almoço era a altura de se lavar os pratos, travessas e terrinas. Havia então um período de repouso até às 2 horas. Enquanto descansávamos não era permitido falar alto, fazer barulho ou ir a outras barracas para conversar com camaradas. Era um período de silêncio, que nós próprios estabelecíamos para que o repouso se tornasse possível.
Nos primeiro tempos, os carcereiros não nos impunham regulamentos rígidos, nem se preocupavam muito com a disciplina. E nada diziam quando, fora do Campo, durante o trabalho, comprávamos géneros e fruta à gente da ilha. Podíamos cozinhar para reforçar o rancho. E também os trabalhos não eram excessivamente pesados. Limpeza, capinagem, transporte de água, pouco mais havia para fazer. Nem nos tiravam os livros. Mas à medida que a Guerra Civil de Espanha se decidia pelos franquistas a repressão no Campo tornava-se sempre mais dura.
Pelas duas horas novamente ouvíamos as dez pancadas no carril. Era a formatura da tarde e fazia-se então a entrega da correspondência, a leitura das "ordens de serviço" que anunciavam castigos ou simples alterações aos regulamentos do Campo.
E outra vez seguíamos formados, com escolta, para um trabalho agora mais penoso, suportando o calor que, em certas épocas do ano, chagava a atingir os 40 graus. O sol e a dureza do trabalho eram a causa de que, de quando em quando, um camarada desmaiasse.
De todos os trabalhos - e não tinha chegado ainda o tempo da "brigada brava" - o mais penoso era o da pedreira.
A pedra era arrancada a picareta e com pesadas alavancas de aço. Ficávamos com os pulsos abertos e sem força. Todos os dias eram sete horas de trabalho, excepto aos sábados e domingos. Era extremamente duro e contudo não era isto o que mais nos desesperava. Sabíamos serem esforço e sofrimento inúteis. Trabalhávamos por castigo.
Pelas cinco:
- Alto ao trabalho!
Formávamos a dois e dois, ferramentas ao ombro, a caminho do Campo. Chegávamos às casernas extenuados, imundos e íamos tomar duche. Se houvesse água. Tomávamos banho aos dez e aos quinze de cada vez com as latas furadas como chuveiros.
Às cinco e meia, as pancadas no carril. O jantar. Os faxinas das várias barracas formavam à porta do refeitório com as terrinas nas mãos e ali esperavam a chegada do guarda, para depois seguirem em formatura para a cozinha. Pelos telhados esperavam os corvos e os jagudis.
Terminado o jantar, lavávamos os pratos e juntávamo-nos em pequenos grupos segundo as nossas amizades e afinidade ideológicas. Entre o jantar e o recolher era o período de convívio. Falávamos, líamos e estudávamos.
Pelas nove, ouvíamos o toque de recolher. Formávamos em frente das camas e perfilados esperávamos o chefe dos guardas. Fazia-se então a contagem.
O corneteiro tocava a silêncio e pelas casernas ouvia-se ainda o murmurar de conversas e, de quando em quando, pelo Campo, os brados das sentinelas:
- Sentinela alerta.
- Alerta está.
- Passo a palavra.
Aos sábados e domingos não havia trabalho fora do Campo. Estes dias eram destinados à lavagem da roupa e limpeza das casernas.
Fora uma reivindicação nossa. Pedíamos um reforço de água e colocava-se um bidão à entrada de cada barraca na sexta-feira à tarde. Três camaradas, por escala, encarregavam-se da baldeação.
Pelas manhãs de sábado, logo depois do toque de alvorada, púnhamos ao ar camas, roupas, prateleiras, enfim, tudo quanto tínhamos nas casernas. Era o dia da batalha contra os parasitas. Os percevejos eram no Campo, depois dos carcereiros e dos mosquitos, os inimigos mais ferozes. Insecticidas não tínhamos, mas queimávamos os ferros das camas com os fogareiros a petróleo.
Um outro inimigo eram as matacanhas, uma espécie de pulga que se aloja nos pés. Enterra-se na pele e forma casulo. Provoca uma comichão desesperada e é necessário descarnar em volta para arrancar o casulo completo com a matacanha lá dentro. Alguns camaradas especializaram-se naquela operação. Se o não fizéssemos, a matacanha reproduzia-se e podia originar infecções que por vezes conduziam a amputações de dedos ou mesmo de um pé. E havia muitas na ilha, tantas que chegavam a cegar galinhas.
E na baldeação, na lavagem da roupa e no acabar com os percevejos se passava o sábado.
O domingo era o dia de descanso, embora a alvorada continuasse a ser às cinco e fôssemos obrigados a levantar-nos. Se tínhamos livros, era o nosso dia de leitura e de estudo em conjunto. Falávamos de vários problemas culturais e políticos.
Quando nos levavam os livros, conversávamos ou fazíamos pequenos objectos, como estatuetas de osso, caixas de madeira, jogos de xadrez, afiadores de lâminas e outras pequenas coisas.
Era também o dia de escrever à família, se a chegada do navio estivesse próxima. Nos tempos mais duros íamos para o refeitório e sob a vigilância dos guardas escrevíamos as nossas cartas e postais. No final devíamos devolver os lápis e o papel que sobrasse.
Entretanto o Campo transformava-se.
Quando chegámos existiam treze barracas de lona, montadas em duas filas no sentido do comprimento do Campo e com um espaço central de uns cinquenta metros. Existiam ainda três barracas que serviam de refeitórios. À entrada, mas fora do portão, encontravam-se os alojamentos para a GNR, que ficou até ser substituída pela "Companhia Indígena", cuja chega se esperava então para muito breve. Igualmente havia barracas para os guardas, que inicialmente eram uns dez.
Iam-se construindo novas barracas e quando João da Silva chegou como novo director estava já levantadas as construções de pedra e cal, com um reboco de cimento, caiadas, por dentro, a branco e, por fora, a ocre, com rodapé cinzento. O Campo com aquilo a que chamavam pavilhões ganhou um aspecto diferente.
Dois daqueles pavilhões ficavam a meio do rectângulo, no sentido da largura, com dimensões de uns quarenta metros de comprimento por uns dez de largura. Entre eles havia um corredor de doze metros de largo, que ia dar ao portão de entrada. Dois, de iguais dimensões, perpendiculares aos primeiros, estavam portanto alongados no sentido do comprimento do Campo.
Num dos extremos, para o lado do mar, a cozinha e a casa da carne formavam bloco. No sentido oposto, pelo alinhamento dos dois primeiros pavilhões, encontravam-se as barracas desmontáveis de madeira. Serviam de oficinas e uma delas de balneário e lavadouro. As sentinelas mantinham-se no mesmo ponto.
Os dois pavilhões mais próximos do portão estavam divididos em duas dependências separadas. Os que se encontravam logo à esquerda e à direita da entrada do Campo estavam divididos a meio no sentido longitudinal. No da esquerda instalaram as oficinas e o refeitório; no da direita, aquilo a que chamávamos a mitra e o porta-aviões. A mitra era o depósito de doentes e convalescentes. O porta-aviões, o alojamento dos presos que, cedendo às pressões dos carcereiros, renunciavam aos seus ideais julgando abreviar assim o tempo de prisão.
Os dois pavilhões perpendiculares às oficinas, refeitório, mitra e porta-aviões, estavam divididos transversalmente em cinco dependências. À esquerda o B, à direita o C. As dependências em que estavam divididas eram designadas por: B-1, B-2, B-3, B-4, B-5, C-1, C-2, C-3, C-4 e C-5. No pavilhão C, uma das dependências era destinada à enfermaria. No B, uma outra dependência servia de arrecadação. Lá se encontravam as nossas malas, a que não tínhamos acesso. Todas as restantes eram os nosso dormitórios.
Entre os pavilhões B e C, em frente do portão do Campo, ao fundo, havia uma construção diferente de todas as outras. Era o consultório do médico. Mas também servia de casa mortuária, o que estava perfeitamente de acordo com um clínico que mais gostava de assinar certidões de óbito do que de tratar dos doentes.
Assim, à direita de quem entrasse no Campo, paralelamente à mitra e ao porta-aviões, ficava a carpintaria, depois, numa segunda barraca, o balneário e o lavadouro e, por fim, já perto da vedação do Campo, uma terceira barraca para a alfaiataria, barbearia e reparação de automóveis.
Os pavilhões foram construídos com mão-de-obra cabo-verdiana, miseravelmente paga. Um oficial de pedreiro ganhava quatro escudos por doze horas de trabalho.
Foi José Júlio da Silva quem orientou a construção do Campo. Quando Manuel dos Reis estava ausente, substituía-o. Era mais humano e sempre que vinha ao Campo procurávamos resolver com ele qualquer problema, mas sem resultado, pois não tinha poderes para isso.
As novas construções tinham vindo substituir as antigas barracas, em muito mau estado. Algumas tinham abatido com o vento. Um funcionário viera verificar o estado em que se encontravam e trouxeram barrotes para as escorar. A partir daí decidira-se a construção de novas instalações.
Contudo as obras arrastavam-se. Aproximava-se o período das chuvas e em Abril de 1937 tudo estava suspenso. Da "enfermaria" apenas existiam os pilares onde se apoiaria uma daquelas barracas alemãs que trouxemos da vila do Tarrafal.
Muitos de nós estavam doentes. O posto clínico não existia ainda. Esmeraldo Pais Prata, nomeado médico em Setembro de 1936, apareceu pela primeira vez no Campo em Fevereiro de 1937. Vinha acompanhado por Manuel dos Reis e José Júlio da Silva. Esperávamos consulta, mas não a tivemos.
Esmeraldo Pais Prata falava na montagem de uma enfermaria, porque só então poderia dar consulta e fazer tratamentos. Mas, montada a barraca, em Março continuava sem aparecer. A sua vinda tinha apenas como finalidade demonstrar que o Campo dispunha de médico e logo não podia faltar assistência aos presos.
Apareceu em Maio. Quisemos consulta, medicamentos, mas nada conseguimos. A "enfermaria" estava em fase de acabamento, mas parada. Era preciso comprar tinta para as paredes interiores e não havia dinheiro. Andavam a compartimentá-la, de modo a haver alojamento para doentes, uma sala de tratamentos e um gabinete médico.
Esmeraldo Pais Prata considerou não existirem ainda condições que lehe permitissem a actividade clínica.
Um dos aspectos da vida do Campo era também quanto observávamos da vida dos cabo-verdianos. Víamos a população da ilha esfarrapada, miserável, as crianças com os ventres dilatados por uma fome nunca saciada. Eram espancados pelo branco que os tratava como animais. Extrema era a sua miséria. Ignorantes, doentes, atacados pelo paludismo, a morte prematura era frequente entre eles.
Perto de nós, a cerca de um quilómetro do Campo, ficava o cemitério do Chambão. Talvez esta proximidade fosse também um dos motivos da escolha do local para o campo de concentração.
Enquanto o Campo não teve vala, víamos muitas vezes passar os enterros, acompanhados por uma música de grandes búzios, em numerosa orquestra. Os sons eram monótonos, repetidos. Na frente ia um estandarte branco. O corpo era transportado aos ombros de quatro homens, num caixão tosco, de tábuas ligadas entre si. À frente tinha qualquer coisa para defender a cara do morto do sol ou da chuva. De longe, já ouvíamos os búzios e o choro ulutante das carpideiras. Corríamos ao extremo norte do Campo, que, mais próximo da estrada, nos permitia ver o enterro.
No regresso, a música continuava a tocar, mas trazia uma guarda avançada de cavaleiros. Depois do funeral havia banquete.
Mas também os enterros obedeciam a questões de mais ou menos posses. Se a família do morto era pobre não havia música nem carpideiras.
Também não eram felizes os soldados landins da "Companhia Indígena", chegados ao Campo, a 16 de Novembro de 1936. A mais pequena falta era duramente castigada. Faziam guarda constantemente sem folgas e sem se atreverem a queixas. Os oficiais e sargentos tratavam-nos a cavalo-marinho. Para os menos brutais, o argumento era a bofetada, o pontapé e principalmente as palmatoadas. Se estavam de guarda, aproveitavam-nos ainda para outros serviços nos quartos de folga. Não tinham momentos livres. Para eles se inventavam os trabalhos mais absurdos e todos os dias trabalhavam, mesmo aos domingos. A alimentação era miserável. Nas noites em furtivamente nos aproximávamos do arame farpado contavam-nos que passavam muita fome. Além de espezinhados por serem negros, existiam ainda pelos quartéis os que se governavam com o rancho. Os géneros entravam por uma porta e saíam por outra para alimentar os familiares de sargentos e oficiais.
Víamos os soldados angolanos limparem o terreno em volta do arame farpado a fim de terem caminho aberto para a guarda e a ronda. Por vezes assistíamos a incidentes entre os soldados. Certa vez presenciámos uma discussão que não entendemos. Uma das sentinelas queria ser rendida no ponto em que se encontrava; a que a vinha render entendia que o local era outro. Não chegaram a acordo e ficaram as duas, cada uma delas sem arredar pé do ponto que fixara. Dada a volta ao Campo e rendidas todas as sentinelas, o Cabo da guarda participou e voltou com o cabo branco para levar os teimosos e os conduzir ao oficial de dia. Ouvimos depois gritos dos soldados, castigados com palmatoadas e pontapés. Meterem-nos numa cerca de arame farpado e ali passaram o dia e parte da noite.
Entre os oficiais havia um que particularmente se distinguia pela sua crueldade. Não lhes dava descanso, inventava trabalhos. Era o tenente Samuel.
O pré de um soldado angolano não ia além de um escudo por dia.
Eram frequentes os incidentes na Companhia. O tenente Eurico meta raparigas no aquartelamento e aquilo dava origem a escândalos. O próprio comandante tinha uma apenas para si, que certa vez lhe fugiu para a Cidade da Praia onde foi novamente buscá-la.
De quando em quando havia toques a formar companhias para o serviço de vigilância ao Campo, sempre reforçada quando o Guiné chegava e nos dias em que permanecia no porto.
As noites eram mais vigiadas.
Para nós eram lúgubres. Acabado o trabalho queríamos ler e não nos era possível com os petromax suspensos em postes junto da cerca de arame farpado. Improvisámos então candeeiros. Assim conseguíamos ler. Também fabricámos fogareiros. Pretendíamos evitar os gastos de petróleo não nos servindo dos fogareiros que tínhamos trazido da fortaleza de São João Baptista. Íamos fazendo reserva de combustível, pois poderia acontecer que nos cortassem a compra.
A 12 de Junho de 1937, novos camaradas entraram no Campo.
Chegaram no Lourenço Marques Eram quarenta e um. Com que impaciência esperámos pelo fim da distribuição de roupa e das buscas nas malas. Queríamos saber notícias. Como ia a frente de Madrid, estaria o governo republicano a bater os fascistas, como seguiam as coisas em Portugal...
E quando por fim entraram e nos abraçámos e nos reunimos nas barracas, as perguntas não acabavam mais. De um grupo passávamos a outro para nada perdermos do que se dizia. Durante dias arrancámos quanto pudemos dos camaradas recém-chegados.
Ao Campo não chegavam notícias. Os jornais e revistas eram-nos proibidos. O que conseguíamos ir sabendo com muito esforço e engenho chegava atrasado. A correspondência era censurada, borrada a tinta negra, depois cortada à tesoura, e pouco nos chegava de Portugal e do mundo que nos encorajasse como revolucionários com notícias de vitórias do nosso combate.
Éramos agora cento e noventa e dois.
A vida no Campo retomou o seu curso. Mas construía-se a "frigideira", projectávamos uma fuga e tempos bem mais difíceis se aproximavam.»
Testemunhos de: Aníbal Bizarro, António Dinis Cabaço, António Gonçalves Coimbra, Armando Martins de Carvalho, Armindo Amaral Guimarães, Augusto Costa Valdez, Francisco Miguel, Henrique Ochsemberg, João Faria Borda, João Rodrigues, João da Silva Campelo, Joaquim Amaro, Joaquim Gomes Casquinha, Joaquim Ribeiro, José Barata Júnior, José Gilberto Florindo de Oliveira, José Neves Amado, José Santos Viegas, Josué Martins Romão, Manuel Baptista dos Reis, Manuel da Graça, Miguel Wager Russel, Oliver Branco Bártolo, Reinaldo de Castro
Coordenação de: Franco de Sousa