Intervenção de José Pedro Soares - homenagem tarrafalistas 2016

Imprimir

Estimados amigos, companheiros.

 

Regressamos hoje de novo a este local de memória no Cemitério do Alto de São João, para lembrar e homenagear os resistentes que há oitenta anos, desterrados, inauguraram o Campo de sufocação e martírio do Tarrafal, na Ilha de Santiago, Cabo Verde, símbolo do terror e da opressão fascista.

 

Já passou muito tempo, sabemo-lo bem, mas eles jamais poderão ser esquecidos. Os resistentes encarcerados no Tarrafal foram chama e também semente num tempo bem difícil da luta dos portugueses pela liberdade e pela democracia.

 

Não podemos deixar que, por omissão, se esqueçam esses tempos de barbárie. Por isso aqui voltamos para que, sobretudo junto dos mais novos, frutifique o conhecimento desses tempos e o exemplo de perseverança e coragem que constituiu a vida e a luta de todos aqueles que em condições tão desumanas e violentas foram levados presos e severamente castigados para lugar tão distante, tórrido, agressivo e isolado.

 

Neste local repousam os restos mortais dos 32 que lá morreram e para cá foram trasladados depois de 25 de Abril. Trinta e dois dos que foram desterrados para tão longe, distantes das famílias e dos amigos, em condições tão cruéis, entre areias sem vegetação, o sol escaldante dos trópicos e a humidade do mar, num curto rectângulo rodeado por valas largas e profundas, cercadas de arame farpado e sempre vigiados pelo olhar atento e quantas vezes carrancudo dos guardas e sentinelas nesse tempo que parecia nunca mais terminar. Um tempo que, para esses 32 mártires, constituiu mesmo o findar das suas vidas.

 

Foi no dia 29 de Outubro de 1936 que desembarcaram no Tarrafal, "Campo da Morte Lenta", como ficou conhecido, os primeiros 150 presos, resistentes anti-fascistas. Mais tarde outros grupos foram chegando.

 

Alojados inicialmente em tendas de lona, logo conheceram a natureza dos ventos marítimos, a invasão das poeiras, que levaram à lenta destruição desses abrigos. Conheceram a péssima alimentação, os castigos por tudo e por nada, o trabalho forçado, muitas das vezes das 6 horas da manhã ao pôr-do-sol, na pedreira, no arranjo de caminhos, sempre pressionados, para que tudo fosse feito mais depressa, nada diferente daquilo que os nazis faziam nos campos de concentração. "Quem entra naquele portão perde todos os direitos e só tem deveres a cumprir", dizia o seu director.

 

As provocações e castigos sucediam-se, muitos cumpridos na célebre "frigideira", pequeno bloco de tijolo e cimento, que tornava a sua ocupação insuportável quando o sol atingia a sua maior expressão e parecia que tudo queimava.

 

Nesses períodos do dia os corpos escorriam de transpiração e a sede era constante. O calor acentuava ainda mais o cheiro nauseabundo do balde das necessidades. E para agravar o sofrimento dos presos ali colocados, a alimentação diária era quase sempre pão e água, intercalada nos outros dias com a sopa. A fome e a sede eram também, por isso, uma arma contra os presos e fazia parte daquele martírio.

 

A falta intencional de assistência médica e de medicamentos contribuíram para desfechos fatais precoces, levando a que muitos presos ali morressem após agonia prolongada. Estes crimes do fascismo e dos seus carrascos não podem ser esquecidos.

 

Tudo isto começou há 80 anos. Tinham decorrido apenas 10 anos desde o golpe militar fascista de 1926, quando já vigorava o poder absoluto de Salazar, que entretanto havia ilegalizado Partidos e encerrado estruturas associativas da vida democrática.

 

O dito "Estado Novo" do fascismo reprimia o Povo e todos os que se lhe opunham, tendo criado um forte aparelho repressivo, com destaque para a PIDE (ainda com outro nome) e a Legião Portuguesa.

 

Na tentativa de condicionar a infância e a juventude criou a Mocidade Portuguesa, rasgou definitivamente a Constituição da República e, copiando o fascismo Italiano, alterou leis laborais, criou o corporativismo e fez aprovar a célebre Constituição de 1933, a Constituição do fascismo.

 

Seguindo o pensamento e actuação das ideologias nazi-fascistas que dominavam já alguns países da Europa, e no intuito de quebrar a resistência dos trabalhadores e do povo, foi criada a monstruosidade do Campo de Concentração do Tarrafal, na linha do que Hitler ia fazendo na Alemanha e mais tarde em países ocupados durante a II Guerra Mundial.

 

O Tarrafal foi assim o local para onde foram enviados muitos dos que não se renderam ao fascismo. Inicialmente destinado a presos portugueses, mais tarde, a partir de 1964, passou a receber os africanos das ex-colónias, nossos irmãos de combate na luta comum contra o fascismo e o colonialismo, o regime opressor derrubado com o memorável levantamento militar dos jovens capitães em 25 de Abril de 1974.

 

A todos os níveis, o Campo do Tarrafal, foi uma vergonha humana, que a história regista como o momento mais sombrio protagonizado pelo poder político e económico instalado com o golpe fascista de 1926.

 

Poder político e económico, sim, e não pode haver enganos, porque o fascismo não foi obra de só um homem. Com Salazar e mais tarde com Caetano estavam os seus cúmplices, os que serviram e se serviram do regime, os que implementaram e cultivaram o servilismo, o medo e a ignorância para perpetuarem a exploração e o sofrimento do povo.

 

Hoje são os resistentes tarrafalistas que estamos a homenagear, e quem se quiser dar ao trabalho de pesquisar, de ler e de conhecer lá encontrará as suas proveniências: participantes no 18 de Janeiro de 1934, os insubmissos marinheiros da revolta do Tejo de Setembro de 1936, operários de diversas profissões, soldados, empregados, técnicos, intelectuais, naturais de diversos locais do país.

 

Muitos dos que sobreviveram, depois de regressarem, continuaram a acompanhar-nos nos longos anos do combate ao fascismo, e alguns viveram ainda as exaltantes alegrias e lutas depois 25 de Abril. Os seus exemplos prolongam-se ainda como ondas no oceano dos combates que se continuam a travar pela defesa do Portugal de Abril.

 

Muitos dos nomes dos tarrafalistas estão ainda bem presentes e vêm-nos com frequência à memória, e certamente não seria ofensa aqui lembrar: o Barata, que nos deixou há tão pouco tempo; o Borga e os outros que tanto se empenharam na criação da URAP; Gabriel Pedro e o seu filho Edmundo, o único que sobrevive dessa epopeia; o sapateiro de Baleizão, Francisco Miguel de seu nome, que tanto trabalho deu à PIDE e tantas as vezes lhes fugiu; o Fernando Alcobia, de 24 anos, que depois de passar tantas as vezes pela "frigideira", com a saúde tão debilitada, acabou por morrer; o Domingos Santos, também ele muito jovem, que depois de tudo aquilo que passou acabou por enlouquecer; o Mário Castelhano, destacado dirigente anarco-sindicalista; e outro, mais outro e mais outro. Sem nunca esquecer aquele operário do Arsenal, de reconhecidas qualidades, já anteriormente deportado para Lajes do Pico, nos Açores, que depois mergulhou na clandestinidade, foi preso novamente e submetido a longa incomunicabilidade, foi enviado para Angra do Heroísmo e finalmente para o Tarrafal, homem arguto e de fina inteligência, determinado e surpreendentemente culto, respeitado por todos, e que acabou por lá morrer nos braços dos seus companheiros de cativeiro, esse mesmo, o Bento Gonçalves, temido pelo fascismo, e que pelas suas reconhecidas qualidades foi secretário-geral do PCP, grande partido da resistência e do povo.

 

Ao homenagearmos os presos políticos enviados pelo fascismo para o Campo de Concentração do Tarrafal não esquecemos também todos os outros que, nas diferentes cadeias espalhadas pelo país, foram sujeitos a maus-tratos, à tortura, condenados a penas de prisão e muitas vezes a prolongadas medidas de segurança.

 

Cabe igualmente lembrar o sofrimento dos familiares e amigos destes resistentes e uma vez mais reconhecer o seu inestimável apoio e luta, e bem assim a solidariedade desenvolvida pela Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos.

 

O exemplo das vidas que aqui recordamos, da sua actividade, sacrifícios, resistência e luta, foram suficientemente fortes e importantes para Portugal e para a Democracia para que nesta oportunidade se chame a atenção das Instituições, dos Órgãos de Soberania do Estado e do Poder Local para que não permitam o esquecimento e para que encontrem as condições e os meios para proteger e preservar para as gerações futuras a memória desse grande património nacional da luta e da resistência ao fascismo. Nunca é tarde para se fazer o que deve ser feito.

 

Nesse sentido saudamos as autoridades de Cabo Verde e a Fundação Amílcar Cabral pela preocupação e empenhamento em preservar o que resta dessa antiga cadeia do Campo de Concentração do Tarrafal, agora transformado em museu nacional da resistência, local onde se encontram testemunhos de resistentes portugueses e dos combatentes anti-colonialistas dos novos países da nossa língua comum.

 

Com igual satisfação saudamos a decisão da Câmara Municipal de Lisboa, que, em conjunto com diversas entidades, entre as quais se inclui a URAP, se empenhou na recuperação da antiga cadeia do Aljube, constituindo aí um museu que foi inaugurado em 25 de Abril de 2015.

 

Lá podemos encontrar uma vasta informação sobre os acontecimentos políticos no tempo da ditadura e aspectos relacionados com a utilização deste estabelecimento prisional, espaço agora dinamizado com a realização de actividades sobretudo dirigidas aos mais jovens, aos alunos de escolas e, claro, a todos que os pretendam visitar e inteirar-se de como foram esses tempos de opressão.

 

Igual satisfação queremos expressar à Assembleia da República por, no final da sua última legislatura, ter aprovado unanimemente a proposta da URAP no sentido de ser criado, na instalação militar onde funcionou a Cadeia do Porto, pela qual passaram mais de 7600 presos já recenseados, um futuro espaço de memória evocando os muitos homens e mulheres vítimas do Fascismo que ali foram presos, interrogados, torturados ou cumpriram as penas, e muitas vezes até as célebres medidas de segurança decretadas pelo Tribunal Plenário de má memória.

 

Bem sabemos que a nossa civilização registou grandes avanços e conquistas, mas não nos podemos alhear dos novos problemas. Na actualidade persistem e agravam-se desmandos dos grandes interesses económicos, prossegue, como nunca, a concentração da riqueza e as políticas de retrocesso. Diariamente chegam notícias preocupantes. São milhares e milhares de refugiados vítimas dos conflitos bélicos. Novos muros, novas barreiras, manifestações xenófobas e até de cariz neo-fascista.

 

No Brasil e em outros países da América Latina a direita reaccionária e golpista parece empenhada em recuperar os privilégios e o poder que a democracia lhes retirou. Em muitos locais do mundo continuam as guerras, as deslocações de populações, as fomes, o desrespeito pelos direitos nacionais e os atropelos aos direitos humanos, e a corrupção de alguns, bem instalados, continua a conviver com a miséria da maioria da população.

 

Não podemos baixar os braços. Saibamos continuar a luta por um mundo melhor.

 

25 de Abril sempre - fascismo nunca mais!

 

 

2 de Abril de 2016

Print Friendly, PDF & Email