Intervenção de Herculana Velez, filha do preso político Joaquim Diogo Velez, na inauguração popular no Museu Nacional da Resistência e Liberdade
Desde já quero agradecer a todos a vossa presença
Viemos à cadeia dos homens que não cometeram crimes
Fomos meninos e meninas
Não nascemos adultos, tonámo-nos adultos em tempo de ser criança.
Tinha 3- 4 anos e durante 4 anos o meu pai como funcionário do PCP e a minha mãe sua inseparável companheira e eu de tenra idade mergulhámos na clandestinidade.
Durante 4 anos não convivi com nenhuma criança, se a curiosidade infantil me impelisse a assomar a uma janela poderia denunciar algum sinal que comprometesse a segurança clandestina da família e de outros camaradas.
Até que ambos foram presos. A minha mãe saiu ao fim de um ano o meu pai ao fim de 9.
9 anos passados em função desta cadeia, ora a caminhar a fim de visitar o meu pai, ora assistindo às lutas travadas na entrada desta fortaleza pelas companheiras e mães principalmente mas também outros familiares exigindo direitos como p. ex. saber porque determinado preso umas vezes, outras o grupo todo não tinham direito a visitas etc, etc.
Peço-vos que ao olharem para mim não me vejam como uma mulher com 70 anos, vejam uma menina com 7, 8, 10, 15 anos ali na entrada daquele portão nos mais rigorosos invernos ou nos mais tórridos verões.
O frio, o vento, a chuva, nós crianças apenas amparados pelas muralhas que eram as mães ainda assim não suficientes para que não enregelássemos. Lá em baixo o mar furioso batia nas rochas daquela pequena praia com tanta força que as ondas se misturavam com a chuva e nós à espera que portão abrisse. Se o horário da visita estava marcado para as 14 horas , quanto pior estivesse o tempo mais a entrada se atrasava, 15, 20, 30 minutos ou sem mais nem menos e sem explicação a visita era cancelada.
Se eu tinha medo?
Sim sentia medo mas não o demostrava, nem o medo nem as lágrimas que são reacção natural numa criança, a menina adulta que eu era sabia que esses sinais podiam ser aproveitados pelos Pides ou os guardas da cadeia e usados junto do meu pai para o vergar para o fazer vacilar e desmoralizar que perante o conhecimento do sofrimento da filha ao ver o pai preso pudessem dizer-lhe: não tem vergonha de submeter a sua filha a tal sofrimento?
Nunca chorei nunca demonstrei medo nunca falei, eu não falava nem para dizer o nome!
Eu tinha consciência que o que me trazia a esta cadeia não era a mão da minha mãe eu sabia o motivo da prisão do meu pai porque estava encarcerado sabia que o crime pelo qual foi condenado foi o de lutar para que a filha e todos os filhos do povo português tivesse acesso aos mais elementares direitas como a educação a saúde a alimentação. Os criminosos eram aqueles que o tinham prendido.
O que me trazia a esta cadeia era o regime fascista era o governo da ditadura era a falta de liberdade, a ditadura que alimentava a miséria e a ignorância. E a quem se lhe opunha torturava, prendia e matava
Se esta menina ficou marcada pela vida clandestina, pelos sacrifícios e a luta dos pais resistentes antifascistas, sem dúvida!
Esta menina que não brincou o seu mundo era à dimensão de 4 paredes a existência de outros meninos só conhecida pelas vidraças fechadas da janela e sobretudo a ausência de ambos os pais marcaram no mais profundo do meu ser a solidão e o silêncio que nenhuma criança deveria conhecer.
Estou hoje aqui mas algumas crianças não poderam aqui chegar, como eu viveram o mesmo terror mas por diversas razões ficaram pelo caminho, meninos e meninas quer pela fome ou falta de assistência médica pereceram, ficando nas nossas memórias presto-lhe a minha mais sentida homenagem.
A todos os homens e mulheres que abnegadamente corajosamente se entregaram à luta contra o fascismo pagando com longos anos de prisão deixo o mais profundo agradecimento louvando as suas vidas e o seu legado.
Quero deixar aqui também o meu agradecimento e homenagear o povo de Peniche que vencendo o medo e ameaças da Pide prestou auxílio e uma enorme solidariedade para com as famílias dos presos políticos em condições económicas mais desfavorecidas abrindo as portas das suas casas para que nelas pernoitássemos.
Eu e a minha mãe ficamos em algumas dessas casas.
Arrepia saber que houve vozes a quererem que este local se transformasse num hotel de luxo, como seria repousar sobre os gritos dos resistentes antifascistas aqui torturados?
Por isso quero agradecer a todos os que se levantaram, manifestaram e trabalharam para que esta fortaleza pudesse ser hoje o testemunho vivo das marcas do fascismo através de todas as histórias aqui contadas, exposições, testemunhos, possam servir à nossa e às futuras gerações de guião para que nunca mais homem nenhum possa ser privado da sua liberdade, torturado ou assassinado por delito de opinião que os mais de 2 mil homens cujos nomes estão aqui gravados sirvam de exemplo a todos nós e nos alertem para que as várias direitas que aí surgem, os herdeiros do fascismo saudosos do passado voltem a matar a liberdade.
Fascismo nunca mais!!
27 de Abril de 2024