por Cristina Pratas Cruzeiro, Historiadora da Arte e Investigadora científica
As paredes preenchidas de mensagens políticas inscritas em frase e em imagem preencheram a paisagem urbana de Portugal de Abril e representam, ainda hoje, parte do imaginário colectivo que temos sobre a Revolução. De entre todos os elementos que preencheram as nossas paredes, o mural assumiu grande proeminência, tendo sido utilizado como manifestação pública da consciência política por partidos políticos, associações culturais, comissões de moradores, e, entre outros, por iniciativa cidadã.
E.M. de Melo e Castro referia em 1977 que «A escrita nas paredes é pois um facto altamente revelador da liberdade de um POVO e uma manifestação colectiva da força comunicativa da sua vontade.»(1). Essa vontade, essa liberdade, é desde 1976 um direito consagrado na Constituição da República Portuguesa (artigo 37º, CRP) onde está inscrito que «Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio (...)» sendo que «O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura».(2)
Durante o processo revolucionário, a pintura mural proliferou no espaço público como ferramenta de comunicação, sem que existisse uma oposição expressiva à sua realização por estar na via pública. Transformou-se nesse período em material de propaganda essencial para alguns partidos, entre os quais o PCTP/MRPP, o PS, a UDP e o PCP, que ainda hoje o utiliza como veículo regular de comunicação com as populações.
Contudo, a adopção de medidas restritivas à inscrição livre nas paredes das nossas cidades começou a ser efectivada de forma progressiva, sobretudo a partir de 1978. Disso dá nota, por exemplo, a 1.ª Assembleia de Organização das Artes e Letras do PCP em Lisboa (1978), que aprovou uma moção de protesto sobre a decisão da Câmara Municipal de Lisboa (CML), na altura presidida pelo PS, que visava a proibição da pintura de murais e afixação de cartazes numa extensa área da cidade.
O caminho da proibição, ilegal, associado fortemente à tentativa de restrição da liberdade de expressão e propaganda, começou desde então a ser trilhado, mantendo-se até à actualidade. Ignorando que a liberdade de expressão consagrada na nossa CRP garante não só o direito de manifestar o próprio pensamento, como também o da utilização dos meios através dos quais esse pensamento pode ser difundido - incluindo portanto a pintura de murais e outras inscrições no espaço público - alguns municípios têm procurado estratégias de coação e tentado formas de criminalização sobre quem exerce esse direito.
Essa atitude tem sido evidente relativamente ao domínio da expressão de cidadania, para a qual o espaço público sempre foi um espaço de criação e reacção criativa, de expressão e manifestação de resistência, mas também no domínio partidário. É frequente, por exemplo, a abordagem de forças de segurança pública a activistas partidários que estão a fazer inscrição mural como forma de comunicação e propaganda, procurando obstaculizar ou impedir a sua realização.
Mesmo apesar de as excepções à liberdade de propaganda estarem taxativamente previstas por lei, assentando na proibição da utilização de materiais não biodegradáveis e na proibição de realização de intervenções murais em edifícios e estruturas com uma natureza ou função específica3 (nºs 2 e 3 do artigo 4.º, Lei n.º 97/88). Não deixa de ser digno de nota que, embora esta lei regule a afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda, sejam estas últimas as mais reprimidas.
Recentemente, o caminho de obstrução à livre intervenção mural tem sido acompanhado por uma estratégia de sobre-ocupação das paredes. E intencionalmente ou não, a vaga de iniciativas e programas públicos de arte urbana tem contribuído para esta estratégia. Enquanto se ocupam as paredes da cidade com intervenções artísticas escrutinadas pelo poder local, retira-se espaço à sua ocupação livre. Claro que a intervenção artística mural pode ser politizada e tem-no sido, como aqui já foi referido, desde o 25 de Abril de 1974.
Actualmente, continuam a existir colectivos, associações e cidadãos, entre os quais artistas, que não prescindem dessa liberdade. Não obstante, a institucionalização de gabinetes e galerias de arte urbana sob gestão camarária, que fazem depender a intervenção mural da sua aprovação, limita o seu âmbito, o seu contexto de realização e reduz os espaços desocupados da cidade para a sua ocupação livre. Recorrendo à inscrição popularizada em várias paredes do mundo - «paredes brancas, povo calado» - poder-se-ia dizer que a cacofonia de imagens e mensagens também pode significar «povo calado», sempre que se restrinja a inscrições «autorizadas» e que ao povo lhe sejam limitadas as liberdades e direitos consagrados por lei.
(1) Melo e Castro, E. M. de (1977) Pode-se escrever com isto. Colóquio Artes nº 32 (pp. 48-61). Fundação Calouste Gulbenkian.
(2) Constituição da República Portuguesa (2005). https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx
(3) Lei n.º 97/88 (1988) https://dre.pt/dre/detalhe/lei/97-1988-377083
artigo publicado no boletim da URAP nº. 168 de 2022