Forças políticas de extrema-direita, apologistas do ódio, do racismo e da xenofobia, e branqueadoras do fascismo, emergem em vários países do mundo como uma ameaça real à liberdade e à democracia.
Em Portugal, país que foi oprimido por meio século de ditadura fascista, as forças democráticas não podem faltar à chamada e têm de dizer não a iniciativas como a da criação de um museu alusivo a Salazar que seria uma afronta a todos os que, lutando pela liberdade, sofreram a prisão, a tortura ou o assassinato às mãos de uma ditadura que conduziu o país à miséria de que só a Revolução de Abril o libertou.
Nesse sentido, a cíclica tentativa de criar em Santa Comba Dão um local de evocação de Salazar e do fascismo (sejam estátuas, fundações, museus, ou “Centros Interpretativos” como este que agora se pretende criar) deve ser repudiado por todos os democratas porque se insere, objectivamente, numa campanha de branqueamento do fascismo, que visa apresentar o regime deposto como um normal acontecimento da nossa história, ditado pelas circunstâncias de uma época.
Apoiar a batalha que a União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP) tem travado para que se abandone a anunciada criação de um “Museu Salazar”, com esse ou outro nome, é respeitar os valores inscritos na Constituição da República e os milhares de cidadãos que foram vítimas do regime fascista.
Entre outras iniciativas, a URAP apresentou, em 28 de Fevereiro de 2020, na Assembleia da República (AR) uma petição, subscrita por 10.396 cidadãos, para que se abandone o propósito de criação de um “Centro de Interpretação do Estado Novo”, sedeado numa antiga escola primária/cantina com o nome do ditador, proposta pela segunda vez pela autarquia de Santa Comba Dão (a primeira foi em 2007), que o tornaria inevitavelmente num lugar de peregrinação dos saudosistas do fascismo.
Esquecer ou apagar os ensinamentos da história é sempre um mau precedente para o presente e para o futuro de um povo. Só uma grave ou leviana incompreensão da História pode levar à convicção de que o 25 de Abril pôs em definitivo Portugal ao abrigo de qualquer regime autoritário ou ditatorial.
Lembremo-nos de outros exemplos e realidades, como em Itália, onde a localidade de Predappio, terra natal e de sepultura do ditador Mussolini, é destino de concentrações fascistas, ou em Espanha, no Vale dos Caídos, onde esteve durante longos anos sepultado o ditador Franco, que se transformou num local de culto de neofascistas de toda a Europa, o que levou recentemente o governo, o parlamento e o Tribunal Supremo de Espanha a deliberar pela exumação dos restos mortais do ditador para um cemitério da capital.
A discussão em Plenário da AR, dia 3 de Dezembro, da Petição n.º 81/XIV/1ª, da autoria da URAP, que se seguiu à reunião da Comissão Parlamentar de Cultura e Comunicação de dia 16 de Junho, foi um enorme passo em frente no sentido de inviabilizar a pretensão da câmara.
Recorde-se que esta petição foi antecedida por uma carta de 204 presos políticos e por um anterior abaixo-assinado com 18.000 assinaturas entregues igualmente no parlamento.
Intervieram no Plenário diversos grupos parlamentares, nomeadamente do PCP, PS, Verdes, BE, PSD e CDS, tendo os quatro primeiros defendido o espírito da petição no respeito pelos valores inscritos na Constituição da República e pela memória dos milhares de vítimas do regime fascista.
A nota de esclarecimento do presidente da Câmara de Santa Comba Dão, Leonel Gouveia, entregue no parlamento, argumenta, nomeadamente, que “a autarquia tem vindo a trabalhar num projecto cultural agregador do potencial turístico da região, visando a criação de uma rede de Centros Interpretativos de História e Memória Política da Primeira República e do Estado Novo, e na necessidade da promoção do turismo e lazer (…) nestes territórios de baixa densidade”.
Ao contrário da autarquia, a URAP defende que não é através da evocação de Salazar e do Estado Novo que se desenvolve a região de Santa Comba Dão e que o seu povo precisa de uma política que apoie e proteja a agricultura, em que os agricultores tenham garantias de escoamento dos produtos a preços justos; de um mundo rural vivo, desenvolvido, dinâmico e com as infra-estruturas básicas de apoio, que favoreça a atracção das populações (em especial, dos jovens) e inverta os surtos demográficos que hoje conduzem à desertificação e à morte das aldeias.
Defende ainda para Santa Comba Dão um Poder Local democrático com mais meios para poder satisfazer as necessidades das populações; de efectivo apoio às micro, pequenas e médias empresas para que se fixem nesta região e da penalização das deslocalizações de empresas; da protecção ao emprego com direitos.
Precisa também de uma segurança social pública, universal e solidária que a todos garanta verdadeiro apoio social, em especial, à infância e à velhice; de uma escola pública de qualidade para todos, próxima das populações; de um Sistema Nacional de Saúde que mantenha em funcionamento os centros de saúde, maternidades e hospitais, numa rede de serviços públicos próximos das populações.
Infelizmente, o fascismo não foi um fantasma. Durante o fascismo nestes concelhos (em especial do interior), não houve nenhum desenvolvimento. Bem pelo contrário, estas regiões foram fustigadas com a emigração, o atraso e o abandono, com um modelo de vida económico-social e cultural retrógrado.
A URAP quer deixar bem claro que a petição entregue na AR não é contra Santa Comba Dão e o seu povo. Pelo contrário. Santa Comba Dão é muito mais do que a terra onde acidentalmente nasceu um ditador. Vale muito mais do que isso e tem condições de valorização e desenvolvimento que dispensam visitantes indesejáveis. Santa Comba é uma cidade estimada e estimável. A apologia de Salazar não o é.
A criação do dito museu ou centro interpretativo, ainda que se diga o contrário, outra coisa não seria do que um centro de atracção “turística” para as forças saudosistas do passado, um pólo de excursionismo fascista mundial, susceptível de perturbar a paz social que hoje se vive nesta região, património-maior do nosso viver colectivo.
Há hoje em Portugal uma nova geração que não conheceu, felizmente, o peso da opressão policial, da repressão política, das prisões e torturas, da censura, da miséria, da emigração maciça e das guerras coloniais. Não podemos deixar que o apagamento do que foi a ditadura, e a reabilitação dos seus responsáveis e da sua política abra caminho ao ressurgimento de ideologias fascistas e de práticas políticas nelas inspiradas, em contraponto com as campanhas de descrédito, desvalorização e degradação da democracia.
A insistente campanha de branqueamento do que foi o fascismo – em Portugal e no mundo - apaga por outro lado, numa simétrica falsificação da História, a resistência dos povos e dos que não cederam, não capitularam, e se uniram para vencer a feroz e sangrenta versão de retrocesso social que o fascismo representa. O de Salazar, como os de Hitler e Mussolini.
A memória museológica da ditadura que oprimiu o povo português durante quase meio século, que explique às jovens gerações o que foi o fascismo e que faça a pedagogia dos valores da liberdade e da democracia, não se faz com a criação de lugares de congregação de saudosistas do passado.
A memória museológica que a democracia deve à ditadura é a memória de quem lhe resistiu. É o Museu da Resistência e da Liberdade, no Forte de Peniche. É o Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, em Lisboa. É a musealização da antiga cadeia da PIDE no Porto, na Rua do Heroísmo. O espólio de Salazar digno de estudo está no Arquivo Nacional da Torre do Tombo à disposição dos investigadores.