por Domingos Lobo, escritor, membro do Conselho Nacional da URAP
Os democratas e antifascistas da Europa vêm, de modo sistemático e consequente, alertando para o recrudescimento de forças de extrema-direita, algumas com práticas e posições ideológicas claramente nazis, com discursos de ódio e de violência contra os partidos de esquerda, de xenofobia, homofobia, de diabolização das instituições democráticas, dos sindicatos, das organizações de trabalhadores, criando nos seus discursos anátemas contra o aborto, a imigração e as liberdades democráticas.
Na Polónia, na Eslováquia, na Hungria, em Itália, as forças da extrema-direita, já sem disfarce, ocupam o poder; em França o partido de Marine Le Pen, beneficia, de acordo com o Libération, “de um capital de simpatia perigoso”; o Vox, em Espanha, apesar do relativo desaire nas últimas eleições é, segundo Rafael Simancas, deputado do PSOE, um partido que “representa a ruptura do pacto constitucional que assegura os direitos e as liberdades democráticas dos espanhóis”; e na Alemanha, onde as cicatrizes do nazismo permanecem abertas, a AfD – Alternative für Deutscheland, que se assume herdeiro do partido de Hitler, alcança nas sondagens 19% de apoios. Entre nós, o partido do pregoeiro Ventura é, pelo perigo que esse facto representa para a nossa jovem Democracia, a 3ª. força política com assento na Assembleia da República, beneficiando da liberdade que Abril nos deu, minando, através do ódio e do populismo que os seus discursos destilam, as bases constitucionais e libertárias em que a nossa Revolução dos Cravos se fundou.
Estamos a viver um tempo em que as forças democráticas e neoliberais, que ainda permanecem em maioria nos governos da Europa, se sentem cada vez mais constrangidos e pressionados face à retórica populista da extrema-direita, optando, em alguns casos, como na Alemanha e em França, à boleia do conflito Rússia/Ucrânia, a optar por um discurso cada vez mais radical, impondo medidas económicas e sociais regressivas, tentando neutralizar o populismo da extrema-direita, o que se nos afigura perigoso e contraproducente. Lembramos que em 1930, o Presidente alemão Paul von Hindenburg, pressionado pelo partido nacionalista de Hitler e pela sua ascensão, resolveu abandonar as suas posições moderadas radicalizando o discurso, considerando que dessa forma neutralizava o impacto da retórica populista da extrema-direita: foi o que se viu.
As forças progressistas mais consequentes, como o PCP, têm alertado para o perigo dessa posição, considerando serem de outra natureza, social e política, os motivos estarão na origem da actual fase, sobretudo na Europa, de branqueamento dos fascismos e do nazi-fascismo, através dos meios de comunicação social, das redes sociais e de todo o universo digital que permite às organizações de extrema-direita veicular, sem contraditório e sob anonimato, a sua ideologia.
Desse modo, e tendo em conta a situação política actual e as suas fragilidades, a contínua desagregação dos valores humanistas que o novo mundo cibernético veio acelerar, como Heidegger temia, a banalização dos discursos do poder, a menorização da cultura, com a abertura do espectro televisivo ao sector privado e a lógica concentracionária dos grupos editoriais e de media, a cultura como objecto acrítico de consumo, não vemos, neste contexto, que a ideia peregrina da criação de um hipotético Centro Interpretativo do Estado Novo, em Santa Comba Dão, dado nos parecer politicamente perigosa e, em termos culturais, absurda, sem qualquer benefício para as populações do Concelho, quer em termos económicos, quer sociais. Uma iniciativa deste teor, e com as ideias que lhe subjaz, apenas contribuiriam para designar, aprofundando o anátema, Santa Comba como a terra do “ditador Salazar, ou do fascismo”, trazendo para um espaço belíssimo, de sossego, civilidade e hábitos comunitários, a corte dos saudosistas, dos revanchistas, das franjas mais violentas, antidemocráticas, da sociedade portuguesa, arrastando neste cortejo de desvalidos as memórias de um país de fome, de miséria, de prisões e morte, que os dias jubilosos e fraternos de Abril venceu, impondo a esse reino velho, um tempo novo, progressista e de esperança num futuro justo e fraterno.
Sequer em termos culturais, a criação desse “centro” se justifica: a Cultura é claridade, partilha, liberdade livre, força criadora e libertária, rebeldia, busca do novo, ou seja, o oposto do que a figura que se pretende exaltar com a iniciativa era e advogava, impondo ao povo português, durante mais de 4 décadas, horizontes cercados, medo e ignomínia.
Num tempo histórico particularmente perigoso para os democratas, para os amantes da Paz e da Liberdade; num período de clara regressão civilizacional e humanista, com a extrema-direita a advogar, sem subterfúgios, o regresso da Censura para as questões culturais e de género, a criação de um Centro com preclaras intenções de exaltação de uma ideologia negativa e violenta, atrelada a execuções, campos de concentração e uma longa “guerra colonial” que devastou várias gerações; que outra coisa não será que a tentativa de branquear o fascismo luso, ou seja, o mais nefasto e negro período da nossa história contemporânea é, neste contexto, não apenas uma afronta à nossa Constituição, aos valores de Abril e à Democracia duramente conquistada pelo povo português, mas algo de anacrónico e de perverso. Um espaço contra os valores de Abril e contra a corrente humanista e libertária que lhe esteve no cerne.
Uma afronta aos povos de África, nossos irmãos, aos que morreram no Tarrafal, em Angra, nas ruas de Lisboa, aos que estiveram presos, por trazerem na raiz do pensamento valores de transformação e dignidade para os homens e mulheres deste país, que nos curros de Peniche, do Aljube, na Rua do Heroísmo, no Porto, em Caxias, na sede da PIDE, sofreram toda a sorte de sevícias, humilhações sem nome, tortura e morte.
Um Museu, ou os eufemismos com que o baptizem, em terras do Dão é um contrassenso, a descabelada edificação do pior que no homem existe de inumano, de despótico, de perverso. Contranatura, portanto.
[artigo publicado no Jornal do Centro, 29 de Setembro de 2023]