História > Antifascistas
Armando Myre Dores
Bento de Jesus Caraça nasceu no princípio do século, filho de trabalhadores rurais, em Vila Viçosa. Passou a infância em Aldeias de Montoito, no concelho do Redondo. Estas origens pobres, rurais, vão marcar toda a sua vida. B.J.C. nunca renegou a sua origem de filho de gente trabalhadora, sempre se manteve fiel ao povo de que nasceu.
Apesar de ter acedido ao mais elevado saber universitário, de ter sido professor do ensino superior numa área extremamente difícil e abstracta como são as Matemáticas superiores, de ter escrito livros sobre esta Ciência, de ter escrito uma das obras mais notáveis de divulgação, os "Conceitos Fundamentais da Matemática", ele nunca deixou de ser um homem simples do povo, nunca deixou de ser uma pessoa extraordinariamente respeitadora dos outros, nunca deixou de ser coerente com estas origens modestas, populares, rurais, alentejanas.
Uma das preocupações maiores da vida de Caraça foi divulgar o saber junto do povo, elevar o seu nível cultural, fazer tudo o que estava ao seu alcance para tornar o povo consciente do seu papel na História, para tornar as pessoas activas na transformação da Sociedade.
Na sua conferências "As Universidades Populares e a Cultura", proferida na Universidade Popular de Setúbal, em 1931, depois de recordar que: " A cultura tem sido e é monopólio de um grupo- a classe burguesa- que, por virtude da organização social, torna inacessível a sua aquisição à massa geral da humanidade", ele contrapõe a ideia:
"Deve portanto promover-se a cultura de todos e isso é possível porque ela não é inacessível à massa; o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante".
Esta ideia de que o ser humano é "indefinidamente aperfeiçoável", esta atitude intensamente humanista de confiança nas capacidades do Homem e da necessidade do progresso constante dos seus conhecimentos repete-se ao longo da sua obra.
Ela surge novamente na sua célebre conferência pronunciada em Maio de 1933 " A Cultura integral do indivíduo- problema central do nosso tempo", quando ao definir o que é um homem culto, afirma que é aquele que:
"-Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da vida".
Isto é, Caraça, apelava ao nosso esforço individual para crescermos interiormente, para estudarmos, para lançarmos a nós próprios novos desafios, não desdenhando o esforço que isso provoca.
Porque:
"Para atingir esse cume elevado, acessível a todo o homem, como homem, e não apenas a uma classe ou grupo, não há sacrifício que não mereça fazer-se, não há canseira que deva evitar-se A pureza que se respira no alto compensa bem a fadiga da ladeira".
É curioso notar aqui que Caraça não só praticava estes princípios no plano figurado, pois toda a sua vida foi um esforço enorme de conquista de novos cumes do saber, mas também o praticava na vida real pois era um amante da Serra da Estrela que não se cansava de percorrer e de lhe respirar o ar puro.
Caraça, homem duma cultura superior, não era um elitista.
Contrariamente à atitude que infelizmente se assinala hoje em muitos intelectuais, ele acreditava que a cultura não devia ser monopólio duma minoria, dum público escolhido. Ele acreditava que todo o ser humano pode e deve ter acesso ao saber e à cultura.
Por isso trabalhou infatigavelmente para levar a cultura ao povo através da Universidade Popular Portuguesa, de que foi eleito presidente em fins de 1928, proferindo conferências de alto nível intelectual e de extrema clareza, dinamizando a sua actividade com cursos, palestras, concertos, debates, etc;
Por isso fundou, em 1941, no auge da Segunda Guerra Mundial, a Biblioteca Cosmos, verdadeira enciclopédia do saber da sua época, em que também, de forma extremamente acessível e rigorosa, um numeroso grupo de autores dinamizado por ele publica livros sobre os mais diversos domínios do saber;
Por isso publicou nessa Biblioteca esse notável livro de divulgação da Matemática e do seu enquadramento histórico, social e filosófico, que foram os "Conceitos Fundamentais da Matemática".
Que extraordinário exemplo este de serenidade e lucidez de contribuir para a elevação cultural do povo e o despertar da alma colectiva das massas no meio dos horrores da guerra provocada pelos nazis e a repressão fascista no nosso país.
Uma das coisas que mais espanta em Caraça, é o seu saber enciclopédico.
Além de conhecimentos da sua especialidade em Matemática, ele revela conhecimentos e acertadas opiniões em domínios da História, Filosofia, Estética, Literatura, Teoria do Conhecimento.
Era um homem com uma visão universalista do mundo, com um enorme respeito pela cultura de todos os povos.
Quem se der ao trabalho e ao prazer de ler algumas destas obras não poderá deixar de ficar espantado com o extremo rigor de Caraça nos domínios mais variados, com a clareza da sua escrita, com a capacidade de tornar simples e acessível aquilo que é complexo e difícil de entender.
Ficou célebre a sua polémica com António Sérgio nas páginas da revista "Vértice" em 1946, em que B.J.C. revela não só profundos conhecimentos de Matemática como da sua interpretação filosófica.
Apesar das grandes diferenças ideológicas e de postura cívica destes dois grandes pensadores, não deixa de ser notável que António Sérgio não temesse entrar nos domínios da Matemática (embora, por vezes, com algumas incorrecções) e Caraça não temesse entrar nos domínios da Filosofia, que Sérgio considerava ser uma coutada de uns poucos iluminados.
Esta ideia de que o conhecimento não é estanque, que o homem culto não se deve limitar a interessar-se pelo seu domínio específico do saber, pela sua especialidade, é duma actualidade excepcional, numa época em que a tendência é para um aumento da especialização em detrimento daquela "Cultura integral do indivíduo" que Caraça defendia.
Na conferência realizada em 1936 na U.P.P. " A Arte e a Cultura Popular", Caraça escrevia:
"A especialidade, portanto, para o especialista e, honra ao especialista!
Há, no entanto, em cada compartimento de actividade, uma margem, larga e luminosa, que interessa ao especialista e a todo o homem, como homem; uma região que, pertencendo ainda à especialidade, faz, no entanto, já parte daquele conjunto de aquisições gerais que permite ao homem encontrar-se no mundo, consciente do seu papel e lugar nele.
É esse conjunto de aquisições que forma o património comum e permitido do homem culto."
Outro aspecto que ressalta na obra de B.J.C. é a ideia de que a Cultura é um instrumento de Libertação do ser humano.
Constatando, como já vimos, que o saber era património duma minoria, Caraça luta infatigavelmente para retirar esse monopólio a essa minoria e para despertar o interesse das pessoas pela conhecimento, pelo estudo, pela cultura, pois isso é uma condição muito importante para o povo alcançar a sua libertação.
Num país que tinha nessa época 52,5% de analfabetos (dados de 1946) Caraça mostrava que o domínio dos conhecimentos era indispensável aos trabalhadores para se libertarem.
Como escrevia já em 1931 na citada conferência sobre "As Universidades Populares e a Cultura":
"Assim, cultura e liberdade identificam-se - sem cultura não pode haver liberdade, sem liberdade não pode haver cultura. Deve ainda a cultura tender ao desenvolvimento do espírito de solidariedade. Não apenas solidariedade de cada um com os da sua família, da sua aldeia ou da sua pátria- solidariedade do homem com todos os outros homens de todo o mundo".
Já nessa altura Caraça dizia, na intervenção feita na sessão realizada pelo MUD, em 1946, na Voz do Operário, ao comentar a existência de mais de metade da população analfabeta:
"Mas estes números ainda nos não dizem tudo; a situação é muito mais grave, se pensarmos em que bom número daqueles que a estatística nos diz que sabem ler, são pessoas cujo grau rudimentar de instrução (...) não oferecem garantias de não serem ou virem a ser, a breve trecho, analfabetos totais".
Hoje a situação mudou sensivelmente no que diz respeito ao número de analfabetos. Mas num país em que o analfabetismo funcional continua a ser muito forte, em que apesar da profusão de jornais, rádios, canais de televisão, internet, o ser humano tende a ficar subjugado pela informação que outros lhe fornecem "trabalhada" e orientada para criar um "pensamento único", o pensamento das classes dominantes, é mais actual do que nunca ajudar as pessoas a pensar pela sua própria cabeça, fomentar aquela cultura que permite um melhor conhecimento do mundo e uma maior capacidade transformadora.
Como dizia Caraça na "Cultura integral do indivíduo...":
-" O homem culto é aquele que tem consciência da sua posição no Cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence"
E pouco antes, na mesma palestra:
"Precisamos, para não trair a nossa missão, de nos forjarmos personalidades íntegras, de analisarmos o nosso tempo e de actuar como homens dele. Como homens que sabem distinguir o fundamental do acessório, que, na resolução de um problema, não se deixam perder no emaranhado dele, nem cegar pelas nuvens de fumo que os interessados pela sua não solução a todo o momento e infatigavelmente lançam".
Finalmente, outra linha de força do pensamento de B.J.C. é a preocupação constante com a dignidade do indivíduo.
Num tempo de repressão e de miséria como era o tempo de Caraça, de espezinhamento dos direitos humanos mais elementares, de Censura, de incultura, de negação da liberdade, soam como um desafio aos poderosos deste mundo as palavras de Caraça escritas na já citada conferência sobre "A Universidades Populares e a Cultura" ao definir quais os objectivos da formação mental:
" Deve, em primeiro lugar, dar a cada homem a consciência integral da sua dignidade".
Caraça era um homem simples, um homem bom, um homem generoso.
Dizem os que o conheceram pessoalmente que mantinha sempre uma postura benevolente e cordata, que gostava de falar com toda a gente e, em particular, com os jovens. Alguns dos seus antigos alunos, que tive ocasião de ouvir, referem que Caraça não só dava aulas com elevada mestria científica como conquistava os alunos pela sua afabilidade, a sua preocupação constante coma clareza da exposição, a sua capacidade para alentar os jovens a investigar, a descobrir as coisas por si próprios e agir como pessoas do seu tempo, intervindo civicamente.
Ele próprio, sempre aliou o pensamento à acção. Desde os 19 anos participou na direcção da Universidade Popular Portuguesa, quando ainda estudante universitário, escreveu artigos na imprensa universitária sobre temas matemáticos, interveio sobretudo no campo da divulgação do saber. Mas é no fim dos anos 20, quando é nomeado professor catedrático e assume a presidência da Universidade Popular que se intensifica a sua intervenção no plano político. Demonstrando uma grande coragem participa ao longo dos anos em organizações políticas clandestinas, legais ou semi-legais de luta contra o fascismo, contra a guerra, pela unidade democrática anti-salazarista.
Assinala-se a sua participação no Núcleo de Trabalhadores Intelectuais do P.C.P. já em 1931-32. Este núcleo teria, entre outras missões, a tarefa de criar um sindicato de trabalhadores intelectuais.
Assinala-se a sua participação em diversas organizações como a Frente Popular, o Socorro Vermelho, A Liga contra a Guerra e o Fascismo, na criação do MUNAF e do MUD.
Intelectual de formação marxista e influenciado pelos ideais da Revolução de Outubro, a sua militância política no P.C.P. não oferece dúvidas às pessoas minimamente informadas, quer pelos testemunhos directos daqueles que com ele trabalharam politicamente, quer pela análise da sua obra.
Mas tendo ele próprio uma posição política muito marcada( e alvo de perseguições constantes pelo regime fascista) não deixava de ser uma pessoa muito aberta ao diálogo, sempre pronto a confrontar as suas ideias com as dos outros, sempre capaz de renovar o seu pensamento perante o impacto da realidade em mutação. Por outro lado, é difícil encontrar na história da oposição ao fascismo português alguém que tivesse feito tanto pela união dos esforços de todos quanto se opunham o regime, fosse qual fosse a sua opção ideológica.
Finalmente, queremos assinalar um aspecto talvez menos conhecido do pensamento de Caraça, mas que mantém hoje uma flagrante actualidade. É a sua posição extremamente lúcida no que respeita à dicotomia "patriotismo- internacionalismo".
Este é talvez o problema político mais difícil de elaborar teoricamente e de praticar coerentemente. Todos sabemos que, em princípio, é fácil admitir que todos os homens nascem livres e iguais em direitos, que se é contra o racismo e a xenofobia, que se deve respeitar a cultura e a maneira de ser dos outros povos, etc.
Mas quando tocam a rebate os sinos da "Pátria em Perigo!" grande parte das pessoas esquece imediatamente aquilo em que acreditava ou julgava acreditar. É que os preconceitos nacionalistas e retrógados são ainda hoje muito fortes.
Por isso, recordemos aqui as sábias palavras de Caraça sobre este assunto:
"Este internacionalismo não significa de modo nenhum a destruição da pátria, antes pelo contrário, implica a sua consolidação e o seu alargamento a todas nacionalidades - a formação da pátria humana. O coração do homem é grande e nele cabe bem o amor da sua nacionalidade ao lado do amor de toda a humanidade". (As Universidades Populares e a Cultura-1931)
Não significa isto que hoje, como ontem, se deva contemporizar com as tentativas de fazer uma globalização, que falando em nome dos interesses de todos serve apenas os interesses dos mais fortes. Mas a essa globalização não se deve opor o fechamento nos interesses particulares e mesquinhamente nacionais, mas uma atitude verdadeiramente racional e humanista de coadunar os interesses de cada pátria, em particular ,com os interesses das pátrias dos outros.
À globalização capitalista não se deve opor o nacionalismo feroz e redutor mas o internacionalismo esclarecido.
Não se julgue que este problema é de hoje. Mais uma vez, oiçamos Bento Jesus Caraça já em 1931, há 70 anos, portanto!
"As ideias do internacionalismo têm caminhado muito e têm conquistado muito terreno. Os próprios governos dos Estados promovem a criação de organismos superiores a cada um dos Estados independentes- Sociedade das Nações, Federação Europeia.
São portanto internacionalistas, dum internacionalismo diferente é claro do aqui exposto, pois enquanto este se baseia na fraternidade real dos povos, aquele tem por objectivo a defesa de certos interesses que se não encontram já bem assegurados, considerando-se cada (um) Estado isolado, dentro das suas fronteiras". (As Universidades Populares e a Cultura-1931)
Com esta última citação terminamos a exposição sobre algumas linhas mestras do pensamento de Bento de Jesus Caraça, manancial inesgotável de ideias inspiradoras para compreender e transformar este nosso mundo tão contraditório em que as possibilidades que se abrem ao progresso da Humanidade se chocam tanto com os interesses daquela minoria detentora da riqueza, do poder e do saber que Caraça tanto combateu na sua vida.
Saibamos seguir o seu exemplo e o seu legado.
Armando Myre Dores