Intervenção de Jorge Sarabando no 45º Aniversário do III Congresso da Oposição Democrática

É natural que ainda hoje nos interroguemos porque foi em Aveiro que se realizaram os Congressos da Oposição Democrática, três momentos altos da luta contra a ditadura.


Certo é que a cidade de Aveiro durante anos foi conhecida como o "Berço da Liberdade", por aqui ter irrompido a Revolução de 1828, barbaramente reprimida pelos governantes absolutistas. Bastará lembrar que o Desembargador Gravito, e outros três chefes revoltosos, foram condenados à forca no Porto e mandados decapitar, sendo as cabeças pregadas no alto de um poste e expostas nas suas terras de origem. O centenário da Revolução foi luzidamente celebrado já depois do golpe militar de 28 de Maio, que abriu caminho à ditadura fascista.


Pouco antes da Revolta do 31 de Janeiro, foi erigida, por subscrição pública, a estátua de José Estêvão, combatente destemido do Cerco do Porto e, depois, eloquente e desassombrado tribuno parlamentar, que recebeu durante décadas múltiplas homenagens. Excepto a que os democratas de Aveiro lhe quiseram prestar, com a criação de uma Casa-Museu, que foi proibida pelo Governo Civil. Mas, em muitos anos, era naquela estátua que os resistentes anti-fascistas iam depor uma coroa de flores.


Poderá reconhecer-se, por isso, a existência de uma certa tradição liberal, no que esta palavra então significava de liberdade, emancipação e progresso, e que permaneceu na memória de sucessivas gerações. Mas isto não explica por que se realizou, a meio daqueles sombrios anos 50, num tempo de ferocidade repressiva, de divisões na Oposição, em parte por reflexos da Guerra Fria, de verborreia anti-comunista do governo de Salazar, seus epígonos e serventuários, o 1º Congresso Republicano.


Durou apenas um dia, mas foi uma proeza. A PIDE andava por perto, ameaçava e atacou até uma tipografia onde se compunham materiais. A figura tutelar foi o Professor António Luís Gomes, antigo ministro da República, pai de outra figura notável, o Prof. Ruy Luís Gomes, professor universitário emérito, que teve a alegria de regressar do exílio brasileiro pouco depois do 25 de Abril.


Os temas dominantes foram o da restauração das liberdades democráticas, dos direitos políticos denegados aos portugueses, mas tímidas as abordagens sociais.


Do 1º Congresso como do 2º, o principal organizador foi Mário Sacramento. Era um democrata de têmpera, médico, escritor, pensador marxista, seis vezes preso pela Pide, morreu cedo, com 48 anos, amargurado com quatro décadas de ditadura, a impunidade da polícia política, as torpezas da censura. Muitos lembram a última frase, com melancólica ironia, da sua Carta-testamento: "façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá".
Mário sabia, como poucos, estabelecer pontes, construir a unidade entre os democratas, condição necessária para o derrubamento do fascismo. Associava a tolerância, de saber ouvir e dialogar, de entender as diferenças de opinião, à intransigência nos valores e nos princípios de democrata e humanista.


Mário pertenceu a uma geração admirável de democratas aveirenses, gente séria, corajosa, determinada, generosa com os mais frágeis, solidária com os perseguidos, atenta aos mais velhos, acolhedora dos mais jovens, combativa sem esmorecimentos pela liberdade e o progresso, sempre encontrando no Povo o motivo, a causa e a razão da luta. Tantos podia lembrar, mas aqui deixo alguns nomes que me são mais queridos, como o de Álvaro Neves, Armando Seabra, João Sarabando, Costa e Melo, José Gouveia, Mário Sacramento.


O 2º Congresso, a cujo Secretariado tive a honra de pertencer, realizou-se em Maio de 69, ainda pairavam altas as ilusões da falsa primavera marcelista. As suas Conclusões reflectem um novo patamar de compreensão da natureza do Regime. Já não se reclamava apenas a instauração das liberdades, exigia-se também o fim dos monopólios. Estava já adquirido que a democracia política era inseparável de profundas transformações económicas e sociais, pois o ponto que levou mais horas de discussão no Secretariado, que funcionava no escritório do Dr. Carlos Candal, não foi esse, mas o referente à guerra de África. Foi no limite de tempo que se chegou a acordo sobre a versão final.


O grande contributo do 2º Congresso foi a afirmação da unidade de todas as correntes democráticas, e a existência duma platatorma por todos assumida.


Vale a pena dizer, conforme se pode verificar na documentação existente na Torre do Tombo, que a PIDE seguiu a par e passo a preparação do Congresso. Aliás, não faltaram as intimidações e as devassas.


Do 3ºCongresso iremos ouvir falar por quem o viveu mais de perto. Apenas deixo duas notas:


- a primeira, para sublinhar que os seus trabalhos reflectem uma evolução no entendimento da luta contra a ditadura, da qual já não se admite a possibilidade de qualquer regeneração do Regime, antes se colocando com clareza a questão da ruptura no plano de Estado;


- a segunda, para referir que são muitos os testemunhos de militares de Abril que reconhecem no 3º Congresso uma fonte inspiradora do Programa do MFA. Recordo vários escritos de Melo Antunes, Pezarat Correia ou Duran Clemente. Este oficial foi um daqueles que assistiu ao Congresso, se indignou com a carga policial e depois escreveu um texto que circulou pelas Unidades militares.


A tradição de luta como "berço da liberdade" contou, certamente, mas os três Congressos de Aveiro, marcos relevantes da luta contra a ditadura, devem-se no essencial ao paciente, corajoso e perseverante trabalho unitário desenvolvido por Mário Sacramento e pelos outros democratas aveirenses. Merecem bem a nossa homenagem e que atentemos no seu exemplo, nos tempos de hoje, quando crescem as ameaças à paz e o perigo de guerras em grande escala, quando o fascismo volta a crescer na Europa, no continente americano, no Brasil, com velhos e novos enganos, velhas e novas máscaras.


A luta pela paz e pela democracia nunca termina, todos os dias recomeça e se renova.


Jorge Sarabando

Aveiro, 7 de Abril de 2018

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